
CUCA FERREIRA

Cuca Ferreira
AR, 2021
instalação sonora
AR
Essa obra nasce como uma reação ao processo de asfixia a que temos sido submetidos.
Asfixia metafórica.
Asfixia ideológica, cultural, de pensamento e de expressão. Idealizadas por um grupo que tenta transformar o Brasil numa espécie de mistura de Irã com Porto Rico, implementando o fundamentalismo evangélico e o terror miliciano como formas de controlar a população para atender de forma subserviente à concentração econômica.
Vilanizando artistas, professores e qualquer um que ouse uma visão humana evoluída, “oxigenada”.
E asfixia literal.
Síndrome Respiratória Aguda Severa. Sars-Cov-2, o nome oficial de uma doença que mudou o mundo por asfixiar suas vítimas.
Uma doença que é tratada com respiradores e com oxigênio. Que também faltam.
(“Eu não consigo respirar”, uma das frases mais importantes da história recente, nos serve como símbolo da dissolução da fronteira entre asfixia metafórica e literal.)
AR é uma obra sobre isso.
O que é o ar que nos falta?
É matéria? Existe? É literal? Pode ser visto? Pode ser ouvido? Dá pra pegar?
Pode ser materializado?
Sou músico. De sopro. Para além do ar como meio de propagação das ondas sonoras, todos os sons que produzo para garantir minha existência e subsistência têm no ar seu elemento original.
Para me expressar artisticamente, produzo um fluxo de ar a partir do meu corpo (diafragma, pulmões, garganta), que em conjunto com um tensionamento dos músculos da minha boca faz meu instrumento vibrar e produzir notas musicais.
O ar, portanto, sempre foi meio e suporte para minha criação.
Mas num momento em que nos falta o ar, proponho transformá-lo em elemento principal da criação.
Ao invés de usar o ar para produzir e suportar sons reconhecidos como notas, criar com o próprio ar.
Materializá-lo artisticamente.
Materializá-lo.
Faço isso usando meu próprio instrumento, mas sem provocar a vibração que transforma o ar em som.
O ar soa frágil, fugaz, efêmero, débil, desprotegido, indefeso.
Tão frágil como tudo que havíamos construído e conquistado no passado recente do país, e que tomávamos como sólido.
Tão fugaz como a visão de futuro que tínhamos há tão pouco tempo, que parecia resultado de uma linha evolutiva irreversível.
Tão desprotegido como nossa própria noção de civilidade.
Tão indefeso quanto nossa humanidade.
Que agora nos escapa e parece se desintegrar.
No ar.
Esse mesmo ar que nos falta.
Apresentação e gravação ao vivo da performance AR, 2021
Cuca Ferreira (saxofone barítono e pedais)
Cuca Ferreira
Vive e trabalha em São Paulo, SP.
Instagram: @cucaferreira70
SAX EM PUNHO CONTRA A ASFIXIA
Para um saxofonista, o ar é a matéria-prima da arte; é a força física que surge nos confins dos pulmões e atravessa a garganta para encontrar a boquilha do instrumento e ser, então, manipulada em arpejos, solos e melodias, que saem da campana e viajam pelo espaço até nossos ouvidos. O mesmo elemento que está por trás do acontecimento musical é tratado como protagonista desta obra, que propõe o desafio de utilizá-lo como recurso e interpretá-lo de forma literal e metafórica. Essa é a ideia que motiva a instalação sonora AR, concebida por Cuca Ferreira e que compõe a exposição Dizer Não.
“Pensei em deixar o ar explicitamente como a criação nesse momento de asfixia”, comenta o artista, que concebeu a obra no ano passado, em isolamento social. A ideia do ar é aqui também tratada como a metáfora de que nós, enquanto sociedade brasileira, vivemos a asfixia literal e simbólica, equilibrando-nos entre o risco biológico do coronavírus e o risco político do bolsonarismo, com suas consequências subjetivas e econômicas. “Foi esta a minha viagem: expressar-me artisticamente apenas com o ar. Fazer as pessoas ouvir e sentir o ar, que é o que está nos faltando.”
Para realizar a performance, Ferreira se entrega à viagem de processar o som do saxofone por meio de pedais temporizadores, de ganho e de modulação para alcançar essa expressão musical abstrata, algo que o artista vem experimentando há anos. Ele lança mão dos efeitos de overdrive, delay, reverb e wah-wah, aliados a um Harmonizer, um Loop e um oitavador. Um microfone é colocado dentro da campana, e todas as chaves do instrumento são fechadas. O artista, então, assopra como se fosse tocar uma nota comum, mas sem tencionar o lábio inferior – impedindo, assim, a vibração da palheta do saxofone: voilá!, a magia acontece. Tudo é sustentado por seu fôlego. Por isso, essa performance exige mais de sua força física e mental que um show convencional. “Todo o meu trabalho mais autoral tem essa busca, de levar o corpo até o limite.”
Conhecido por sua atividade como músico, Cuca Ferreira participa agora da sua primeira exposição. Apesar de estreante nessa linguagem, ele se considera fortemente influenciado por outras formas de arte em sua vida e obra, principalmente as artes plásticas. Para conceber AR, teve como referência a obra do saxofonista sueco Mats Gustafsson. O artista nos conta que sua cabeça enxerga a música como uma arte visual e que, pela primeira vez, criou uma obra que faz sentido como uma expressão musical que existe para além das melodias, sustentando-se no ar e em nada mais.
Enquanto realiza a performance, sua mente evoca arquétipos que interpretam o elemento ar como a força da natureza que motiva as tempestades – um som agudo –, mas também a respiração de um corpo humano – algo mais grave e profundo. E um objeto específico surge em sua imaginação, carregado de sentimentos por ser um símbolo da pandemia: o respirador mecânico. Justamente por conduzir o artista e o público a estados de espírito sinestésicos, e por evocar imagens tão penetrantes, é que a instalação AR se faz forte e memorável.