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LÍCIDA VIDAL

Lícida Vidal.jpg

Lícida Vidal

Terral, 2020/2021

argila, tecido, composto, cabo sisal, plástico, água, sementes

Instalação composta por tecidos embebidos em argila, suspensos em formato de bolsas, que contém terra e sementes de comida, sobre pequena reserva de água formada por terra e plástico e sistema irrigação por pulverização

Lícida Vidal 

1984, São Paulo, SP

Vive e trabalha em Ubatuba, SP. 

Cursou Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) e é licenciada em Sociologia pela Faculdade de Educação da mesma universidade. Com ações performáticas, fotografias, vídeos e instalações, sua pesquisa atravessa questões sobre o gênero feminino e a natureza. A argila e a água são suas principais matérias-primas, que possuem uma carga simbólica dentro desse debate sobre interdependência, escala, territórios, diversidade e coexistência no processo de colapso do antropoceno. Também integra o coletivo Vozes Agudas. 

Já participou de diversos salões e exposições no Litoral Norte e região, no Estado de São Paulo.

e-mail: licidavidal@gmail.com 

TERRAL E TENEBROSO

 

Agente-Húmus é como a pesquisadora e artista Marina Fraga chama a “entidade imaginária” que “propõe reflexões, intervenções e interações de compostagem política na natureza”¹. Ao falar de artistas que atuam como agente-húmus, ela menciona obras de arte em que a natureza é “agenciada pelo humano [e] atravessa o espaço expositivo”, ou vice-versa. O que está em jogo aqui é a resistência dos espaços expositivos em se perceberem como natureza, ou mesmo como espaço vivo, insistindo em reconhecer a natureza como algo que poderia ou não habitar o museu, que poderia ou não figurar como assunto de uma obra de arte. Entretanto, James Nisbet² afirma que todo objeto de arte é um objeto ecológico. Não por sua essência material, mas porque ele está sempre embrenhado em uma rede de relações que se move e se transforma. Um objeto de arte sempre esbarra em um corpo vivo.

Um dos primeiros trabalhos da exposição Dizer Não, em cartaz no Ateliê397, é Tenebroso, de autoria de Cleverson Salvaro e Frederico Filippi. Trata-se de uma estrutura diagonal, que lembra um mostruário, construída com madeira e janelas cobertas de insulfilme preto. Os artistas explicam que se apropriaram das janelas de uma reforma que acontecera no mesmo prédio da exposição, uma antiga confecção têxtil, e que os vidros escuros serviam para ocultar o que se passava no interior da fábrica. A princípio, essa mesma sensação de opacidade é replicada no trabalho: não vemos o que há dentro dele, embora seja possível presumir que a estrutura guarda algo em segredo. Com certo medo e apreensão, quando colamos o rosto no vidro, vemos uma enorme quantidade de larvas do besouro tenébrio.

A montagem de um recinto para os insetos feito com as janelas da antiga fábrica atribui um caráter produtivo e econômico ao tenébrio. De fato, ele é um dos insetos de maior valor comercial atualmente, cultivado por empresas a fim de compor as rações destinadas aos animais na indústria. Os tenébrios são comidos por galinhas, que são comidas por humanos, que, por sua vez, observam tenébrios crescendo dentro da exposição.

Entretanto, esse não é o único segredo do trabalho. Dentro de Tenebroso, as larvas se alimentam de uma escultura de isopor cujo formato replica a mesma forma da estrutura exterior. “Elas comem de tudo”, diz um produtor de tenébrios em uma reportagem deste ano, que saiu no jornal. Elas comem polímeros não biodegradáveis. Elas comem até escultura. Dessa maneira, o trabalho infiltra-se indiretamente na cadeia alimentar, servindo, paradoxalmente, como uma base sintética para o ciclo orgânico de nutrição. O início da cadeia passa a ser a peça de isopor escondida dentro de Tenebroso, o que aponta para uma condição fictícia na qual os artistas se tornam seres autotróficos, capazes de produzir seu próprio ciclo nutritivo a partir de algo sintético.

Ao lado de Tenebroso está Terral, uma instalação que se impõe aos olhos como uma árvore. No entanto, a obra se ancora não no solo, mas no teto. Grandes redes feitas de pano embebido em argila pendem de cordas, formando pesados bolsões tensionados. Dentro deles, encontram-se grandes quantidades de terra semeada: feijão, maracujá, abóbora, tomate, jabuticaba, milho e juçara. Essas plantas, que também são alimentos, nascerão e crescerão ali durante a exposição. No chão, um lago de água translúcida, contido por um amontoado de terra, demarca a área do trabalho. Um sistema de irrigação elétrico puxa água dessa grande poça e espirra na terra, por meio de pequenos dutos.

A artista Lícida Vidal destaca a importância da bolsa em seu trabalho: esse teria sido o primeiro instrumento criado pela humanidade. Cabe mencionar que não estamos falando apenas do passado, mas também de um presente continuado. Antes mesmo da faca, necessitamos da bolsa. Ferramenta de transporte, de preservação, de memória. Carrega-se o necessário, mas, principalmente, carrega-se o possível. Aqui, carrega-se uma amostra do ecossistema. Fantasio sobre Lícida ser uma nômade de espaços expositivos, artista migratória que, em seu percurso pelas zonas estagnadas, cria hortas comestíveis. O público alimenta-se de sua obra e lembra que, enquanto vê, também digere.

Rememoro a atuação do agente-húmus: ele propõe um atravessamento da natureza dentro do museu (não consigo deixar de lembrar do trabalho Living Room, de Roderick Hietbrink). Mas já não seriam todos os viventes um atravessamento da natureza no espaço expositivo? As grandes bolsas de terra de Lícida Vidal talvez sejam formas de mostrar o ecossistema que, invariavelmente, nos acompanha onde quer que estejamos. Em um só dia de vida, movemos pastos, riachos, ventos, gases, seiva, fungos, bactérias. Terral é o adjetivo para aquilo que nunca poderemos deixar de ser, por um só segundo: podemos ser nômades, mas nunca nômades da Terra.

Em Dizer Não, tenébrios e plantas crescem lado a lado. Esses dois trabalhos anunciam um descontrole sobre a própria conformação escultórica. Em vez de formas estáticas, encontramos conformações instáveis cujas constantes digestão e respiração excedem a funcionalidade do próprio objeto de arte. “[…] um organismo em equilíbrio é um organismo morto.”³ E, por isso, o risco da morte os acompanha. Se, por um lado, Terral dá a ver a simbiose necessária entre humanos e húmus, por outro, a instalação carrega a terra como uma memória trágica através disso que chamamos de antropoceno. Já Tenebroso estará em pouco tempo abarrotada de larvas, que consumirão a própria cápsula de madeira que as comporta. A escultura, feita para virar comida de besouro, anuncia um apocalipse ambiental do qual, talvez, os únicos sobreviventes sejam os seres que metabolizam polímeros. Se trago aqui uma perspectiva trágica, porém, é porque o agente-húmus, em consonância com a proposta curatorial dessa exposição, também carrega em si uma ambiguidade: “Pré-histórico ou pós-histórico, o exercício da imaginação do futuro está próximo das figurações das artes […] Nesta projeção, utopia e distopia são apenas dois lados do espelho, dois reflexos idealizados de um futuro incerto”⁴.

 

MÔNICA COSTER

Originalmente publicado na revista Desvio, 20 ago. 2021.

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¹ Retirado da tese de doutorado Do Fóssil ao Humus: Arte, Corpo e Terra no Antropoceno, de Marina Frega. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016, p. 325.

² Ecologies, Environments, and Energy Systems in Art of the 19605 and 1970s, de James Nisbet, 2014.

³ Retirado de A Teia da Vida, de Fritjof Capra, São Paulo: Cultrix, 1998.

⁴ Idem, p. 326.

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