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LUCIMÉLIA ROMÃO

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Lucimélia Romão

Mil litros de preto: a maré está cheia, 2021

Piscina de mil litros, água tingida e projeção

Lucimélia Romão

Mil litros de preto – O largo está cheio, 2019

Realizado em parceria com as Mães de Maio, inaugurou a 9ª Mostra 3M de Arte - Manifestos por outros mundos possíveis, no Largo da Batata em São Paulo – SP.

Sonoplasta e DJ: Matheus Correa e Lucimélia Romão

Bióloga: Liliane Crislaine

Performers: Adriana Santos; Alessandra Damas; Aparecida Gomes da Silva Assunção; Benedita de Fátima Rodrigues; Carol Zeferino; Claudete Rodrigues Espírito Santo; Cristiane Damasceno da Silva; Débora Silva Maria; Hilda Maria Azevedo; Iara Oliveira de Souza; Ilza Maria de Jesus Soares; Joseane dos Santos; Josefa Ambrozia de Souza; Jucelia Maria dos Santos; Juliana Cavalcante Salvador; Lucimara Santos; Lucimélia Romão; Marcia Yara Conti da Silva; Maria Aparecida Alves Marttos; Maria Eva de Souza; Maria José Lima da Silva; Maria Lucia de Souza; Maria Luciene de Caldas; Marina Affarez; Mayrini Correa; Miriam Duarte Pereira; Nadja Caroline dos Santos; Regina Aparecida Simão Sarchi; Rosana Barros Ortega; Roseli Aparecida Florêncio; Rosilene Florêncio Barros; Tânia Regina Alves de Souza; Vanessa Aparecida Gomes; Zilda Maria de Paula;

TRANSBORDAR

A violência do Estado contra corpos negros ultrapassa as contingências da contemporaneidade. O mar é cenário de fundo do massacre de corpos e individualidades não brancas desde a travessia do Atlântico pelos navios negreiros, e a relação que Lucimélia Romão cria entre a morte, a violência e as águas enegrecidas evidencia essa característica brutal da história do Brasil. Dados recentes, como aqueles apresentados no Atlas da Violência de 2021 (Ipea), reafirmam a calamidade. A maré está cheia. Cheia de vítimas de homicídios executados pela polícia. Cheia de corpos que, não por acaso, são negros. A maré se enche em um movimento repetitivo, até que transborda, e a água negra se revela puramente rubra. 

 

A performance instalativa de Romão é composta de uma piscina de 1.000 litros, cuja água foi tingida por corante até alcançar a tonalidade próxima ao sangue, e de um videodocumentário realizado pela artista em parceria com o movimento Mães de Maio. A obra se adaptou aos espaços que ocupou e, nesse percurso, só teve ganhos: da primeira performance, em 2018, à versão da 9ª Mostra 3M de Arte – Manifesto por Outros Mundos Possíveis, em 2019, somaram-se à ação as Mães de Maio, grupo de mulheres que desde 2006 atua pela memória e pela  justiça para vítimas de violência policial. Além do documentário como elemento espacial, visual e sonoro, a Mostra 3M adicionou a Mil Litros de Preto: o Largo está Cheio (título da obra naquela ocasião) a importância da dimensão pública da obra, que foi apresentada como uma performance que unia as experiências e narrativas da artista e de outras mulheres que lutam por justiça para seus familiares, evidenciando o caráter social e coletivo do racismo e da violência do Estado em espaços públicos e privados.

Em Dizer Não, Mil Litros de Preto: a Maré Está Cheia ocupa uma sala no andar térreo, em que a água negra e a ausência de luz enquadram a instalação imersiva e sombria. Próximo a ela, a obra sonora de Raphael Escobar trata do massacre ocorrido em 2001 no presídio do Carandiru e comunica-se com o ambiente de Lucimélia Romão pela denúncia que ambos os trabalhos fazem da violência policial como instrumento do Estado. Escobar traz o relato de um sobrevivente do massacre e, com isso, singulariza a experiência desse acontecimento explícito e estarrecedor, que muitas vezes foi diluída em números e narrativas construídas por terceiros. Romão também destaca a dimensão individual da violência, com nomes de vítimas de homicídios policiais no Estado de São Paulo enunciados tanto na ação performativa como nas falas das Mães de Maio, que zelam pela memória daqueles que foram silenciados e transformados em estatísticas. Há ainda uma dimensão de gênero que aproxima as duas obras: as vítimas diretas da violência estatal são, na grande maioria das vezes, homens executados pela polícia; mas quem fica e denuncia essa prática racista e classista são as mulheres, suas familiares. Uma passagem de Escobar traz o recorte de um noticiário que anuncia que “mães, irmãs, parentes e mulheres” clamavam por notícias sobre os presidiários massacrados, e são justamente essas relações de parentesco que caracterizam as vozes que falam na obra de Romão. 

Em momentos de agudo cerceamento da vida social e aumento da violência do Estado, como o que passamos agora, temas como esse tendem a ganhar espaço, ainda que as ações denunciadas pelos trabalhos nunca deixem de ocorrer. Não é à toa que uma das integrantes das Mães de Maio, presente no vídeo de Lucimélia Romão, também estampa a bandeira do coletivo Jamac. Também não foi por acaso que, em Dizer Não, a artista realizou a performance junto da obra de Graziela Kunsch: uma grande faixa preta em que se lê: “Mãe na pandemia” – entre tantos sentidos que esse objeto traz, o assunto de Romão é também um deles. As mães são, na maioria das vezes, vítimas indiretas do extermínio autorizado de jovens negros periféricos levado a cabo pela polícia, e essa é uma realidade que só se soma à pandemia. 

 

Mil Litros de Preto: a Maré Está Cheia fechou a programação da mostra Dizer Não com a ocupação do espaço expositivo por meio da performance, valorizado pela capacidade interpretativa de Lucimélia Romão, que transita entre as artes cênicas e as artes visuais. A ação dura cerca de 30 minutos, e, nesse tempo, os espectadores assistem, estáticos, à artista encher uma piscina plástica de 600 litros usando 60 baldes pretos, tagueados e nomeados com dados de vítimas de homicídio policial, até que ela transborde. Os nomes, idades, gênero e causa da morte desses indivíduos são proclamados, repetidos e sobrepostos com sons de tiros, falas e sirenes, formando uma espécie de oração assustadora que denuncia tanto a individualidade desses corpos como a coletividade dessa violência. O clímax – quando a maré enche e, enfim, vaza – não significa o fim da performance, e Romão continua a jogar na piscina os baldes com 7 litros de água rubra, que se espalha no espaço como o sangue humano que evoca. Por fim, os baldes virados, o chão vermelho e a piscina, que se estabiliza e volta a ser turva, parecem emular um cenário de chacina. A experiência da violência cotidiana que incide sobre os corpos não brancos desde os primórdios de nossa história enquanto nação se explicita em frente do público. Aqui, felizmente, enquanto expressão de arte; mas, seguramente, sob o olhar de quem já encarou de frente o racismo e a violência estruturais, como uma imagem já vista, cotidianamente repetida e constantemente temida. Um devir iminente, tal qual o transbordar da água na piscina de Lucimélia Romão. 

BRUNA FERNANDA

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Lucimélia Romão 

1988, Jacareí, SP.

Vive e trabalha em São João del Rei, MG.

Artista de rua, performer e atriz. Formada em 2013 no curso técnico em Teatro pela Escola Municipal de Artes Maestro Fêgo Camargo, em Taubaté, SP. Graduanda em Teatro pela Universidade Federal de São João Del Rei, MG, onde pesquisa teatro e performance negra. É cocriadora do grupo Cia Mineira de Teatro. Atualmente, tem experimentado escritas dramatúrgicas e poéticas na cena contemporânea.

Site: https://lucimelia-romao.tumblr.com/ 

Instagram: @millitrosdepreto

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