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SOL CASAL

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Sol Casal

Transposição, 2020

fotografia

Créditos: João Leoci

CONTRANARRATIVA DA QUEDA

 

A produção da artista Sol Casal dedica-se à criação de imagens que falam e incomodam, seja pela fotografia, seja pela performance, pelo vídeo ou pela instalação. Esse fato, possivelmente lugar-comum para artistas visuais, ganha com Sol Casal uma dimensão discursiva descentralizada e polifônica, que se conecta com repertórios tanto simbólicos quanto objetivos, já que coloca em primeiro plano o corpo e tudo aquilo que ele é capaz de significar. O nu de uma mulher cisgênero que se agiganta em uma sala expositiva, como acontece em Transposição, pode parecer uma reiteração do que já foi visto, mas é justamente a partir dessa referência comum que a artista inverte narrativas artísticas e políticas historicamente consolidadas e que sustentam a realidade que nos cerca. 

Produzida em 2020, Transposição é um conjunto de duas imagens, feitas pelo fotógrafo João Leoci, da própria Sol Casal: ela está de ponta-cabeça com oito velas acesas presas entre os dedos de seus pés. A luz das velas se contrapõe ao escuro do cenário, que dá ao corpo invertido da artista uma indeterminação misteriosa, dramática e cênica que remete às pinturas barrocas. Tal relação com a história da arte não é puro capricho estético; trata-se de uma escolha visual, que retoma, com as fotografias, um período de afirmação e embate narrativo que marcou nações e territórios católicos entre os séculos XVI e XVIII. 

No entanto, não é à mitologia católica que chegou ao continente americano com os portugueses e espanhóis na parte de cima dos navios que Sol Casal faz referência, mas ao simbolismo de repertórios religiosos que vieram nos porões dessas mesmas embarcações, com homens e mulheres de origem africana em situação de escravidão. Aqui, a luz das velas abre os caminhos e cessa a escuridão, mas não por meio de um deus todo-poderoso masculino e autoritário no qual muitas figuras de poder insistem em tentar se espelhar; a cabeça, considerada em muitas culturas o ponto mais sagrado na estrutura física humana, está invertida, e não é sobre ela que reside a luz. E é a terra que dá estabilidade ao corpo, já que os pés, voltados aos céus e guardiões da clareza, trazem a iminência da dor e da queda. 

Trata-se de uma inversão literal e alegórica que vemos nas fotografias em lambe de grandes dimensões de Sol Casal. Essa estratégia, porém, não é exclusiva da produção da artista, mas é adotada por mulheres que há tempos assumem em sua produção a dimensão política do feminismo. Nos Estados Unidos, o uso do corpo feminino como imagem contranarrativa ganhou destaque a partir da década de 60 – e se espalhou pelo mundo, ainda que, no Brasil, até recentemente tenha sido vista com desconfiança por nosso cenário artístico. As discussões sobre gênero avançaram em muitos sentidos nestes 60 anos, tanto no campo social expandido quanto no campo artístico, mas conquistas que o movimento feminista obteve nesse percurso estão sendo fortemente atacadas pelo atual governo brasileiro. E é este período de acirrada disputa política em que vivemos que dá uma nova potência às imagens que retomam o corpo de mulheres como recurso discursivo e subversivo.

Os elementos visuais de Transposição unem espiritualidade e gênero numa narrativa que alude a um fim incontornável. A impressão em lambe também remete a uma materialidade temporária. O equilíbrio é instável, a luz é momentânea, aquilo que se vê duplicado nada mais é do que a captura de um instante – ainda que haja um sentido racional na obra, que retoma a matemática, seja na forma do corpo, seja no título, já que transposição é também um conceito algébrico de troca entre posições de termos. Para o bem ou para o mal, as imagens de Sol Casal nos lembram da efemeridade e da fragilidade do corpo frente a uma disputa histórica de verdades e significados. Mas também sublinham a importância de existir e não se submeter à hegemonia. A imagem é a contranarrativa do processo, já que o fim é sempre o mesmo: a queda.

BRUNA FERNANDA

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Sol Casal

Terra Plana, 2021

Videoperformance

Sol Casal

1984, Buenos Aires, Argentina

Vive e trabalha em São Paulo, SP. 

Bacharel em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2008. As pesquisas empreendidas pela artista têm permeado as linguagens da fotografia, da performance, do vídeo e da instalação, em que se utilizam elementos e símbolos retirados do imaginário, místico e religioso, associados muitas vezes às tradições populares do fazer manual (como tricô, costura, renda e bordado). A artista toma como objeto de investigação o seu próprio corpo, para discutir as relações de representação e apresentação do corpo feminino na contemporaneidade.

Entre as exposições de que participou, as que se destacam são: Transbordar: Transgressões do Bordado na Arte, com curadoria de Ana Paula Cavalcanti Simioni (2020, Sesc Pinheiros, SP); Triangular Arte deste Século (2019, Casa da Cultura da América Latina – UnB, Brasília); Estratégias do Feminino, com curadoria de Fabricia Jordão (2019, Farol Santander, Porto Alegre); e Que Barra!, com curadoria de Carollina Lauriano, Flora Leite e Thais Rivitti (2018, Ateliê397, SP). Em 2019, realizou sua primeira exposição individual, em São Paulo, intitulada Céus Cruzados, no Ateliê397, com curadoria de Carollina Lauriano e Thais Rivitti, e participou também da residência Pivô Arte e Pesquisa. Em 2020, fez parte da residência artística Transmetatlanticus Portugal/Brasil – Brasil/Portugal, promovida pela Casa Niemeyer e pela EMERGE. Seu trabalho compõe o acervo da Fundação Vera Chaves Barcellos (Viamão, RS), do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MAC-RS) e da Universidade de Brasília (UnB).

Site: https://www.solcasal.com 

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